segunda-feira, 1 de abril de 2013

O preço da liberdade


A manhã era a de junho.
Um final de junho soalheiro e agitado.
Agitado...
O junho ou eu?
Uma agitação constante.
Tão constante que lhe tinha deixado de dar conta.
Tão constante que se confundia com o mês, os dias, as horas e os segundos...
Todos eles agitados pela minha agitação.

Nessa manhã acordei assim...como o junho.
Agitada.
Talvez mesmo chateada.
Talvez mesmo zangada.
Talvez mesmo com raiva.
Agitada.
Chateada.
Zangada.
Com raiva.
Sem paz.
Porquê?
Entregue à rotina.
À minha rotina interior.
Uma rotina manipuladora.
Uma rotina condicionadora...

Naquela manhã agitada de finais de junho peguei no carro.
Como em muitas manhãs.
Com o mesmo objetivo.
Com o mesmo trajeto.
Com o mesmo destino.
Se é que o destino é igual em todos os dias.
Ou em todos os dias igual.

Naquela manhã agitada de finais de junho subi a Rua da Rosa.
Numa aparente calma, como só as manhãs nos podem dar.
Uma calma meio adormecida, ou uma calma meio acordada.
Na verdade uma meia calma.
Uma meia calma como só a calma aparente o pode ser.

À esquerda na rua São Pedro de Alcântara, uma camioneta de caixa aberta parada no meio da via.
Um obstáculo portanto.
A calma foi.
A agitação chegou.
E com  ela a chateação, a zanga e a raiva.
Tão fáceis de destapar...
Menos mal que podíamos todos passar.
Aguardei a minha vez.
Impaciente.
Vociferando dentro do meu Ford KA.

A minha vez chegada o espelho retrovisor lateral direito toca na camioneta.
Não haveria crise.
Marcha a trás, um pouco mais de espaço...
Não haveria crise não fosse o pensamento que me trespassou o cérebro no exato momento a seguir ao toque do retrovisor lateral direito na traseira da camioneta de caixa aberta...
E que pensamento foi este?

Solicito um momento de silêncio. Mais um...
Um silêncio que deve também ser ausente de respiração.
Um silêncio absoluto e sem ruidos respiratórios.
Chamo a atenção para este momento.
Chamo a atenção para este momento, pois este momento encerra um pensamento que presumo raro na vida dos comuns mortais.
Menos raro na minha.
Embora igualinho a este não me lembre de ter tido mais nenhum.

Naquele momento, em vez de reorientar o Ford KA, pensei:

“Estou-me a cagar!”

Respirem.

Respirem e fechem a boca.

Tão simplesmente e só isto. “Estou-me a cagar!”.
Um “Estou-me a cagar!” tão cheio de liberdade e desprendimento, que ainda agora quando escrevo estas palavras me impressiona e me eleva.
Me eleva e me liberta.
Me espanta.
Me espanta a minha capacidade de liberdade e desprendimento daqueles dias...

“Estou-me a cagar!”
Prego a fundo.
Tão a fundo como o risco que o gancho da traseira da camioneta de caixa aberta que bloqueava a via fez no meu Ford KA.
A minha via porra!
Tão a fundo que me arrancou a cobertura de plástico da fechadura e me fez um buraco na lateral de trás do carro.
O meu carro Porra.
Também desta vez não parei para ver o tamanho do meu estrago.
O carro comprado tão só e somente com o resultado do suor do meu trabalho.
O Ford KA.
3 meses apenas.
A cara de espanto do fulano que ia a entrar para a dita camioneta é impossível descrever aqui...

Fodi o carro todo.
Perdoem-me o palavrão aqui todo escarrapachado.
Mas teve de ser.
Qualquer coisa menor seria diminuir o tamanho da minha loucura.

Ainda bem que não sou milionária. Não imagino até onde a minha liberdade me levaria!

Naquela manhã agitada de junho de 1998...Estou-me a cagar!
E cagar é sempre um alívio...mesmo quando implica dor.